Olhar de aço, alma em chamas.
Ela apareceu entre as colunas partidas como quem entra numa sala onde já se sabe o desfecho. Não tropeçou nas ruínas, não olhou para os escombros — apenas avançou, como se o chão fosse uma promessa e não um depósito de lembranças. O rosto era uma máscara de determinação; os olhos, dois vidros azuis que nem a poeira parecia capaz de turvar. Por fora, uma armadura dourada que guardava ombros e antebraços; por dentro, um corpo que lembrava a pele e os ossos de qualquer um de nós, só que treinado para não ceder.
Havia fogo nela. Não aquele fogo que se vê em tochas ou que estala em madeira seca — um fogo mais íntimo, conduzido por pequenas convicções e grandes perdas. Era o fogo de quem conhece a temperatura exata do próprio limite e, ainda assim, insiste em atravessá-lo. As chamas não a consumiam; ao contrário, modelavam-na: davam-lhe contornos mais nítidos, um brilho que se infiltrava até as frestas da armadura e fazia vibrar as estrelas gravadas no tecido escuro de sua roupa.
A cena poderia ser lida como um retrato de guerra, mas tinha a delicadeza de um poema. Havia silêncio suficiente para ouvir o bater do próprio coração — um tambor cadenciado que ditava passos e memórias. Lembranças desfilavam como bandeiras gastas: vozes de companheiros que não voltaram, promessas sussurradas à meia-noite, o toque frio de uma mão que aprendeu a sorrir com cautela. Tudo isso contribuía para o aço no olhar. Não era frieza; era escolha. Escolha de não se despir daquilo que a fez forte.
Ao redor, as pedras reclamavam histórias. Algumas eram apenas pedras. Outras carregavam nomes, amores, traições. Ela não precisava decifrá-las. Levantou a cabeça e, por um instante, permitiu-se uma fração de leveza — um sorriso quase imperceptível, como a dobra final num pergaminho. Era o único adianto de humanidade naquele retrato austero: a consciência de que, apesar da armadura, havia calor naquela pele. E que o calor, se controlado, era arma tão afiada quanto a lâmina.
O mundo pede heróis com rosto sério e passos decididos. Resta saber se queremos heróis que não ardem por nada, ou aqueles que, mesmo queimando por dentro, continuam guardando algo: uma cidade, uma promessa, um nome. Ela escolheu conservar as chamas. Talvez porque, sem elas, o aço do olhar viraria apenas metal frio, sem música.
Quando partiu, deixou atrás apenas sombras e rastro de luz. Para os que ficaram, o gesto significou promessa renovada: que havia alguém para enfrentar as ruínas — não por glória, mas por cuidado. E para nós, que observamos de longe, ficou a lição: coragem é manter, em silêncio, uma alma em chamas e não permitir que o mundo a extinga.
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